Cidadania
na prática
Da esquerda para a direita, Edna Buriolla, Kutu Anic, Noeli Santos e José Carlos Raquel.
Quem
tem, doa para quem não tem
O
ano de 2020 vai ficar na memória de todos nós, não apenas por
conta da paralização global da economia e o isolamento social
imposto pelo vírus da Covid-19, mas pelos atos de solidariedade que
fluíram em todas as partes do planeta e que, esperamos, gere um novo
olhar em relação ao outro. Os cenários sobre o nosso futuro são
incertos, assim como o quanto seremos afetados pela crise e pelo
desemprego em nosso País. Mas para uma galera que frequenta os
mesmos clubes de rock desde os anos de 1980 e que se uniu para ajudar
o próximo, uma questão é certa: fazer o bem nos transforma como
seres humanos. E para melhor!
É
o que nos conta a artesã Simone Calvi Anic, mais conhecida no mundo
das artes e do rock and roll como Kutu. Ela integra a
Cooperativa do Mundo Invisível, que produz e fornece peças
artesanais como duendes, fadas, bruxas e magos para diversas lojas,
de vários estados do Brasil, incluindo as localizadas em São Thomé
das Letras, cidade do interior de Minas Gerais conhecida por suas
pedras, cachoeiras e a boa energia dos turistas que a visitam. Se
você já esteve por lá, certamente se deparou com uns simpáticos
duendes, aprisionados em garrafas. Obras da Kutu e de sua trupe.
Acostumada
à fabricação frenética das peças, de um momento para o outro ela
se viu impedida de abrir as portas do seu ateliê, que garante o
sustendo de sua família e a de mais oito artesãos. A internet, que
já era um canal de venda utilizado por ela, se tornou a única fonte
de renda.
Em
uma conversa com a amiga Edna Buriolla, que além de artesã e
integrante da Cooperativa, também trabalhava como auxiliar
administrativa em um laboratório de análises clínicas e tinha
acabado de perder mais esse emprego, elas se deram conta que era o
momento de juntar forças e ajudar os amigos que estavam em situação
ainda mais vulnerável.
Juntaram-se
à prosa, as amigas Noeli Santos, costureira que também precisou
baixar as portas de seu ateliê por conta da quarentena, e a
corretora de imóvel Sandra Andrade, que possui larga experiência
como voluntária na distribuição de roupas aos moradores de rua da
cidade de São Paulo. Mas, como fazer?
Foi
então que resolveram compartilhar a ideia com a galera do rock, que
desde os anos de 1980 frequentam os mesmos bares e clubes da cidade.
“É uma turma grande e bastante diversa, temos desde advogados bem
sucedidos até pessoas muito simples, que vivem nas comunidades”,
explica Kutu.
E
a melhor forma para mobilizar toda essa gente, seria por meio da
produção de um vídeo com a participação de vários amigos que
apoiam a causa, convocando, por meio das redes sociais, toda a nação
roqueira a abraçar a ideia. Assim nasceu o projeto “Quem tem,
doa para quem não tem”.
“No
início, nossa intenção era desafogar os amigos autônomos, como
músicos e artesãos, doando alimentos, mas o movimento ganhou tanta
potência que passamos a ajudar pessoas das mais diversas comunidades
e até um asilo”, conta Kutu. O próximo passo será o envio de
cestas básicas para a Aldeia Guarani, localizada no Pico do Jaraguá.
Amigo,
estou aqui!
“O
bonito dessa história é que a corrente do bem acabou por envolver
mais e mais pessoas dispostas a doar. Começou com os amigos e
expandiu para o amigo do amigo, a tia do amigo, e até a vizinha da
tia do amigo. Quem recebeu também se comoveu e passou a ajudar na
distribuição dos alimentos junto às comunidades”, assinala a
artesã.
Com
o passar do tempo, além das cestas básicas foram incluídos itens
de higiene para o enfrentamento da pandemia. Até o momento, foram
arrecadadas e distribuídas mais de 200 cestas, que se multiplicaram
ao matar a fome de um número ainda maior de famílias, já que
muitas delas foram divididas com os parentes e os vizinhos.
Para
beneficiar o maior número de pessoas possível e não correr o risco
de doar duas cestas para uma mesma família, no mesmo mês, o grupo
montou uma lista com o nome de cada uma delas. E assim, evitar erros,
como os verificados nas ações do Poder Público.
A
flexibilidade das ações e o olhar atento para as reais necessidades
do outro, resultou na compra de itens que, incialmente, não estavam
programados. Foi esse olhar cuidadoso que levou o casal Ingred de
Oliveira Silva e Lindomar Mathias, um violeiro conhecido e muito
respeitado entre os roqueiros, a perceber que o alimento é o item
mais necessário, mas não o único.
Quando
o casal foi levar a cesta básica para uma família que reside no
Jardim Cabuçu, uma área periférica da cidade de Guarulhos, na
Grande São Paulo, eles ficaram bastante impressionados com a
precariedade em que vive a família. O pai da moça que solicitou a
ajuda vive acamado há um bom tempo, provavelmente vítima de um AVC.
E a solicitante está grávida de seu primeiro filho. Para receber o
bebê, ela não possui nada além de um berço doado. “Fiquei muito
comovida com a situação. Falta de tudo àquela família. A fralda
geriátrica utilizada pelo pai é doada pelo posto de saúde, mas não
em quantidade suficiente para o mês. E não havia uma peça sequer
de enxoval para a criança que vai nascer”, conta Ingred.
A
história foi compartilhada com o grupo, e uma amiga da Noeli que faz
enxovais para serem doados, logo providenciou um. Agora, o esforço
da galera é na aquisição de outros itens para o bebê e fraldas
geriátricas para o avô da criança.
Histórias
tão tristes quanto estas são relatadas todo momento por quem recebe
as doações. Como a de Elias Ribeiro de Oliveira, o Índio, como é
conhecido pela galera do rock. Em meio a tantas incertezas sobre o
dia de amanhã, a fome é que mais dói. E essa dor acompanhou por
muitos anos esse artesão e jardineiro que vive em uma comunidade em
Itaquera, no extremo leste da cidade de São Paulo. Seu pai morreu
assassinado quando ele contava com apenas sete anos. Para trabalhar e
deixar o filho em segurança, a mãe colocou o garoto em um albergue.
Índio também viveu perambulando pelas ruas de São Paulo, até
conhecer a galera do rock e a Cooperativa administrada por Kutu, a
qual se junta em momentos de grande demanda, como as vendas de Natal.
Sem poder exercer nenhuma de suas atividades, como cuidar e adubar
hortas e jardins, ele entrou para a lista dos contemplados. Generoso,
dividiu a cesta com um vizinho, e resolveu se juntar à causa na
distribuição das cestas que a cada semana são distribuídas na
cidade, só para ver o sorriso na face das famílias que, neste
momento, não tem como garantir o seu ganha-pão.
Outro
beneficiado pelo projeto, Jaison Campiani, conhecido como Pirata,
morador de Itaquaquecetuba, município da Grande São Paulo, só tem
a agradecer ao grupo. Ele divide o aluguel de uma pequena casa com a
amiga Cida, que por conta do distanciamento social, perdeu sua renda
como faxineira. Ao receber a cesta, não conteve a emoção. “Não
tínhamos nem mais um grão de feijão na dispensa. Kutu, eu te
agradeço. Obrigado mesmo, de coração, o que fez por mim e pela
Cida, não tem preço.”
Gratidão
é a maior retribuição que Kutu, Edna, Sandra e Noeli e toda a
galera do rock poderiam receber. São esses sorrisos, como o que
estampou os rostos do artesão José Edson de Lacerda, conhecido como
Paraíba, e do funileiro Val, que cuida sozinho do filho de 12 anos,
que faz com que a galera siga em frente na arrecadação de
alimentos, itens de higiene e o que mais essa gente esquecida pela
sociedade precisar. E, às vezes, o alimento tão necessário a todos
nós, é apenas um detalhe. O que precisam de verdade é de um gesto
de carinho. É mostrar que não são invisíveis, ainda que não
portem um RG.
Moda
de viola para mais arrecadações
Tocados
pela ação do grupo, dois violeiros bastante conhecidos da turma do
rock por alegrarem as noites nos bares da cidade, Alex Pereira e
Lindomar Mathias, resolveram contribuir com a doação de um baixolão
acústico a ser rifado pelo grupo, e a realização de uma live
via YouTube, ocorrida no dia 13 de junho. Tudo para arrecadar mais
dinheiro e alimentos. Alex, que doou o baixo se diz muito feliz com a
iniciativa, que nasce da comoção e do carinho para com aqueles que
estão passando por um momento de grande dificuldade e incerteza em
relação ao futuro.
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